Razöes do Näo

No próximo referendo sobre o aborto votaremos Näo. Aqui se tenta explicar porquê.

domingo, fevereiro 11, 2007

Fim de caminho

O Sim ganhou, com 59,25% dos votos.
O Não ficou-se pelos 40,75%.
O aborto será liberalizado em Portugal, se realizado nas primeiras dez semanas de gravidez, a pedido da mulher, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado.
Lamento, por todas as consequências que daqui advirão.
Falta ver como será feita a regulamentação.
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Neste blogue apresentámos as razões que justificariam outro resultado. Fizémos o possível e estivémos no debate com frontalidade e boa fé. A maioria dos portugueses votaram noutro sentido. A democracia é assim mesmo.
Aos meus "companheiros de campanha" - CA, David Bengelsdorff, /me, José Maria Brito, Vitor Mácula e Zé Ribeiro - um sentido agradecimento. Foi bom estar convosco.
Este blogue acaba aqui.

sábado, fevereiro 10, 2007

Notas finais

Os argumentos para o meu Não foram sendo postados aqui ao longo dos últimos meses. Uns escritos por mim, outros pelos meus companheiros de blog.
Acrescento apenas mais duas notas.
A primeira para dizer, sem dramatismos balofos, que considero a eventual legalização do aborto como o início de um mau caminho para o nosso país.
A segunda para suprir uma lacuna que, talvez por estratégia sensata, existiu nesta campanha. A imagem pode ser brutal, mas serve para recordar que o voto, os actos, tem consequências.
Ao Manuel agradeço a oportunidade de participar.
E vamos então votar.
Votem bem.

P.S. - Atenção, não furei o período de reflexão. O blog é que está a hora de Espanha...

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

A minha resposta

Chegámos ao fim da campanha. No Domingo, os portugueses terão oportunidade de, em plena liberdade, responderem SIM ou NÃO à pergunta que lhes é feita.
Considero que a melhor resposta é NÃO.
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1. Porque entendo que a defesa da vida humana é um princípio civilizacional basilar, oponho-me a tudo o que possa significar o direito de alguém atentar contra a vida de outrém.
2. Porque entendo que, a partir da concepção, estão reunidas todas as condições para o desenvolvimento vital de uma pessoa, que se prolongará desde esse momento até à sua morte natural. Não reconheço, portanto, que possa existir legitimidade numa intervenção que vise interromper este processo, fora das razoáveis excepções, confirmatórias de toda a regra.
3. Porque os direitos da mulher, que reconheço, não incluem o direito de dispôr da vida do ser humano gerado.
4. Porque a pergunta a referendo propõe a total liberalização e não apenas a despenalização. Isto significa a total desprotecção da vida intra-uterina, o que é, a meu ver, uma gravíssima irresponsabilidade.
5. Porque liberalizar e propôr o aborto como um serviço gratuito do Sistema Nacional de Saúde, a simples pedido, é legitimar um acto que deve ser, por sua própria natureza, extremo e excepcional.
6. Estas convicções não me impedem de compreender a complexidade do papel da mulher e o seu sofrimento, bem como algumas situações limite que devem ser encaradas com humanidade. Desta humanidade devem derivar, em meu entender, dois princípios orientadores:
a) A mulher não deve ser penalizada quando o aborto é feito em situação de extrema necessidade. Isto supõe a despenalização, mas não a descriminalização. Defendo, portanto, que o aborto possa ser encarado como "crime sem pena".
b) As situações limite - malformação do feto, risco de vida para a mãe e violação - já são contempladas na actual legislação, pelo que não necessitam nova cobertura legal.
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Os problemas complexos não têm soluções simples. Este é, em meu entender, o ponto de equilíbrio entre os princípios fundamentais que perfilho e o sentido de humanidade que defendo. E que me fazem responder NÃO.

Nota final: atendendo ao periodo de reflexão que deve anteceder a votação, dou por encerrada a minha colaboração nesta campanha.

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

A consciência

Na "consciência" parece caber tudo. Há quem entenda que basta dizer que certo problema ou tema é "uma questão de consciência" para tal conteúdo ser remetido para uma espécie de limbo onde ninguém tem o direito de aceder.
É bom esclarecer que isto é uma patetice.
Esse entendimento de "consciência" só é admissível (e certo!) no que à minha liberdade pessoal diz respeito, à esfera das decisões e atitudes que só a mim afectem e que só de mim dependam. Em tudo o mais, a liberdade da minha consciência está limitada, no que à sua expressão em actos se refere, à legalidade e ao respeito pelos demais. É bom não perder isto de vista. E convém ter isto presente quando se fala de aborto.

Ville de Lumière

Há épocas e lugares, em que a estrutura e dinâmica representacionais são orientadas por um centro de sentido. Hoje em dia ocidental, o centro dissolveu-se e as representações andam à solta, orientando-se por sentidos e ideologias que é preciso descortinar para se ter acesso ao significado representativo em jogo. Isto parece pedantemente complicado e afastado do concreto quotidiano; no entanto, é o que todos fazemos ao distinguirmos a palavra “paz” dum discurso do governo do dum monge budista, ou ou a gaja ou gajo bons do anúncio da mercadoria que representacionalmente os transporta. É evidente, e aqui estamos nos modelos analíticos necessários à aferição do real, que nunca houve exclusivamente um centro de sentido, e que em qualquer sociedade, a diversidade de sistemas de ideologia e representação sempre existiu. Mas o que tento aqui focar, é o facto de na estrutura social e cultural do pluralismo liberal – é a própria descentração de sentido que constitui a dinâmica social, e que ele propõe fundar e desenvolver.

Quando tal não acontece, passa-se que é contraditoriamente que o centro de sentido se apresenta como a mediação da pluralidade num mínimo de legalidade que a possibilite. Ou seja, trata-se sempre de saber hoje em dia, visto as condições de esclarecimento e diálogo democrático não existirem, onde está o centro de decisão, visto que ele se apresenta sob representações que não lhe correspondem nem sequer indirectamente (por exemplo, a palavra “justiça fiscal” na boca do Ministro das Finanças, ou a palavra “amor” no anúncio do telemóvel). Num mundo em que o centro de sentido, e até o consenso ideal e prático, são substituídos por descentramentos ilusórios e falsas representações, trata-se quase sempre de aferir quem é que nos engana e como, e sobretudo, o que é que em nós próprios nos engana e falsifica.

O engano maior, porque sistémico e fundante, é evidentemente a afirmação de que vivemos em democracia, isto é, que há uma relação indirecta mas minimamente correspondente, entre as vontades da população, e a direcção governativa do geral nacional ou internacional. Acresce a ilusão que essa correspondência e dinâmica, são orientadas e limitadas nas suas possibilidades, por um mínimo constituinte da própria liberalidade e democraticidade. Tudo isto está muito bem narrado, tal como a Carta Universal dos Direitos Humanos. Passa-se simplesmente que, onde se apresentam enquanto tal, na maioria das vezes são apenas capas que escondem portas que abrem para significados opostos ao que apresentam, como qualquer um de nós pode verificar olhando para as práticas governativas e os discursos públicos. Ou para o caso em blog aqui, analisar os subtextos e sentido globais das defesas da vida de tanto discurso “Não” ou das da liberdade e igualdade de tanto discurso “Sim”.

A democracia não trata apenas de se poder votar e falar livremente, mas de estarem dadas as condições verdadeiras de esclarecimento e dialogalidade. Isto é, à democracia corresponde uma ratio que não estando operante, a transforma noutra coisa qualquer.

Por exemplo, o secretismo do voto não trata apenas de proteger a intimidade e liberdade de quem vota, mas de assegurar no debate democrático a sua dialogalidade aberta, para que a conclusão e decisão pessoal (o voto) venha no fim do debate, e não no seu início e desenrolar. Que alguém já esteja claro quanto ao seu voto não é motivo para tal quebra de secretismo, para já porque ninguém tem saberes absolutos que uma informação ou ideia não possa vir a transformar; e depois, porque é exigência de esclarecimento, a suspensão formal da conclusão para esclarecimento e aprofundamento das premissas em confrontação. Isto não significa que não se indique no diálogo democrático, o que se pretende ou não ir votar, mas que tal deve estar integrado nas afirmações e argumentações temáticas, e não ser uma bandeira de posição certa e sumária.

Tudo isto seria grave, se vivêssemos em democracia.

Mas numa sociedade em que um ex-primeiro ministro afirma que é necessário o Presidente da República afirmar como vai votar, estamos no reino das manipulações identitárias e representacionais. Mas claro, e como afirmou o primeiro ministro, “Não discutiremos metafísica”, numa representação de pragmatismo tão falsa como as próprias medidas que o seu governo toma – falsidade que atravessa todos os governos possíveis dum sistema eleitoral que assenta precisamente na desinformação e manipulação identitária, como é confirmado por todas as campanhas possíveis e pensáveis com as regras disponíveis. O que é preciso é “simplex”, o que evidentemente fecha as posições em si próprias, porque a complexidade dá-se precisamente na confrontação. Para o caso em blog, temos o fechamento de cada qual, geralmente nos silogismos “vida humana, protecção do sujeito vivo, portanto Não” ou “dignidade humana, defesa das suas condições, portanto Sim”. O discurso de cartazes e slogans e manifestações, vive desta estupidificação requerida pela alienação, disfarçada de pragmatismo e de “ir ao que importa” sem circunlóquios.

A este fechamento em si próprio de cada posição possível corresponde a configuração das outras posições em representações que confirmem a nossa. Para além de não haver deslocamento nenhum para outras possibilidades, há a transformação destas em algo que não são, como se vê em todas as mirabolantes interpretações que se têm dado à pergunta do referendo, como por exemplo, e para começar discordantemente, a de que a despenalização proposta corresponde a uma liberalização. Convém esclarecer que liberalização é um termo que significa que a actividade em questão não terá outra regularização senão o mercado livre. Ora, não é isso que é perguntado, e não é isso que é proposto (embora, como convém anti-democraticamente, não se saber bem o que é proposto, o que seja como for é de somenos, pois a relação entre o que é proposto em campanhas e discursos e o que é executado é, quando convém anti-democraticamente e como toda a gente sabe, praticamente nula). É evidente que a despenalização sem dar condições de execução da actividade para a poder regular, posição casuística de alguns que querem dormir descansados através da contradição de não acompanhamento do acto abortivo aliado a uma não condenação da mulher que aborta, serve tão só para isso mesmo. Qualquer remissão a si mostra o farisaísmo de tal posição que deixa tudo na mesma mexendo ligeiramente nas representações em jogo (neste caso, a imaginária posição de estar ao lado das duas vítimas do dilema, isto é, uma auto-representação imaculada que não resiste à mínima remissão).

Por exemplo concordante ou talvez não, temos o caso da tese de que a despenalização do aborto corresponde a uma medida urgente de saúde e higiene pública, e que a interrogação ética e metafísica deve ser suspensa. Esta despersonalização do aborto produz uma representação técnica que elide o mistério do ser-se humano e correspondentes interrogações. Trata-se aqui da falsidade de propor para um problema metafisicamente angustiante como a decisão abortiva, uma solução técnica baseada nas possibilidades médicas sem mais, aplicadas ao corpo da mulher como se o embrião ou feto não fosse, de algum modo, um segundo corpo humano. Porque é evidente que para descriminalizar o aborto até às dez semanas, é necessário determinar se o embrião é ou não uma pessoa humana, e não pôr pragmaticamente a carroça à frente dos bois. A imaginária posição de deixar essa determinação no reino da intimidade e liberdade de consciência, é uma falácia, visto que essa determinação não pode ser livre. Nenhuma sociedade se organiza, nem a nazi, sem a determinação geral e pública de quem é ou não humano, isto é, um elemento pleno dessa mesma sociedade. Passa-se, e isso é outra questão, que na prática e exceptuando o caso do aborto e das heranças, a nossa sociedade age não considerando o embrião uma pessoa. Mas essa prática tem evidentemente de se colocar consistentemente perante os direitos humanos e a ciência, em que se levanta pertinente e ferozmente, a possibilidade contrária.

Nota: Quedo a minha participação neste blog, isto para o caso de se manter a intenção de fechá-lo logo após o referendo. Resta-me agradecer a todos a oportunidade, não apenas de ter podido perspegar para aqui os meus dislates ficcionais e temáticos, mas sobretudo de me ter confrontado com a questão específica do aborto e suas abrangências políticas, culturais, religiosas, etc. Não o teria feito com o grau a que fui interpelado, tanto por participantes como por comentadores. Não quero também deixar de dizer o óbvio: uma questão complexa como esta, e com consequências ou interrogações tão veementes em todas as suas abrangências, não será resolvida com uma lei, ainda por cima ilegitimamente posta a referendo de campanha e propaganda. Era o que faltava para a humanidade, uma problemática ética e ontológica ser resolvida e arquivada com umas eleições anti-democráticas. Um abraço a tutti quanti.

Por opção da mulher

Afirmação 1: “Os pais querem o melhor para os filhos” e “entre marido e mulher ninguém mete a colher”.
Afirmação 2: A Lei deve proteger os filhos dos maus pais e intrometer-se quando as disputas do casal ultrapassam certos limites.
Ambas as afirmações são (quase) consensuais. E (quase) ninguém vê entre elas contradição. E isto acontece porque as pessoas sabem que as generalizações são estatísticas morais que não garantem que toda a gente as cumpra, e que a Lei serve, precisamente, para que os “distraídos” tenham um pouco mais de atenção ou sejam corrigidos.
Quando os apoiantes do Sim afirmam que as mulher não são levianas e têm capacidade para decidir o que é melhor eu concordo, e julgo que a maioria concorda também. Mas isto é só metade da questão. A afirmação 1. Falta a parte 2. Porque a Lei também deve, como faz aos filhos, e ao marido e à mulher, proteger o feto das progenitoras que se “distraem” e se "esquecem" da generalização.
Não se trata, portanto, de menorização social ou ataque à dignidade das mulheres quando se pretende que a Lei se importe com o que se passa entre a grávida e o feto. Trata-se, apenas, de manter a regra que rege todas as outras relações sociais.
No aborto “por opção da mulher” o feto não conta. E é mais uma razão para eu votar Não.

terça-feira, fevereiro 06, 2007

Ponto da situação

Torna-se cada vez mais difícil descortinar a substância argumentativa favorável ao SIM no referendo.
Em primeiro lugar, pela razão óbvia: se todos consideramos o aborto "uma coisa má", não se entende que se queira liberalizar e obrigar o Estado a fazê-lo a pedido, como um serviço público, sem sequer perguntar as razões.
Em segundo lugar, porque se há algum tipo de consenso entre os defensores do SIM e os defensores do NÃO, ou pelo menos grande parte deles, é no que se refere à razoabilidade da despenalização. Quase todos advogam por essa despenalização.

Chegados aqui, com propostas despenalizadoras em cima da mesa, aceites por ampla maioria, custa perceber a intransigente defesa do SIM, atendendo aos complexos problemas que iria provocar:

1. Aumento exponencial do número de abortos. Além de se prever a continuação de abortos clandestinos (mesmo que haja uma diminuição do número), a estes somar-se-ão todos os que passarão a caber na legalidade. Haverá, portanto, em números absolutos, mais abortos, quando todos estamos de acordo em que é "uma coisa má".

2. Dificuldade em cumprir a lei que, inevitavelmente, continuará a punir o aborto feito depois das dez semanas. Com que autoridade se vai julgar uma mulher que faça um aborto às 12 semanas, se o Estado os faz, gratuitos e sem perguntar razões, até às 10 semanas?
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3. Não havendo nenhum controlo, nem acompanhamento, nem limitação às razões invocáveis por quem pede o aborto, não estaremos a deixar muitas mulheres à mercê das pressões familiares, sociais ou patronais? Não passará a haver muitos mais casos de mulheres que, desejando ter o filho, se vêem "obrigadas" por pressões externas, a abortar, à sombra da cobertura legal?

Outra razão para ponderar o Não

A eventual aprovação da pergunta em referendo não terminará com duas das situações mais brandidas pelos adeptos do Sim.
Continuarão os julgamentos de mulheres que abortam voluntariamente. A liberalização será até às dez semanas de gestação. Nas restantes trinta o aborto provocado, fora das situações previstas pela actual lei, permanece crime.
O aborto clandestino também não desaparecerá. Não só pela razão anterior, depois das dez semanas a ilicitude mantém-se, mas, sobretudo, pela censura social que o acto carrega. Muitas mulheres continuarão a preferir o segredo da clandestinidade à exposição pública de um Hospital.
Dir-se-á que as mulheres em tribunal e a clandestinidade permanecem mas, pelo menos, se reduz a dimensão do fenómeno. Provavelmente isto é verdade. Temos então, mais uma vez, que ponderar entre os prós e os contras. Menos julgamentos e actos clandestinos justificam a escalada do número de abortos que se seguirá à legalização?

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Ruído

A poucos dias do referendo, parece-me que chegámos à fase do ruído , em que se torna mais e mais difícil discutir, e fica muito mais fácil ser demagógico (não me refiro a nada em particular; e acho natural que assim seja).

Não quero dar o meu (minúsculo que seja) contributo para isso. Termino aqui a minha participação no blog, grato pela oportunidade de tive de participar no mesmo e também pelo muito que pude aprender com tantos que comentaram (defendendo o sim ou o não; aprendi com todos). Votem em consciência (seja em que sentido for). Obrigado!

Relatório dum estranho, sentado na noite e a televisão, o chá fumegante e a música do vizinho, tão só curioso para que não se saiba

O problema do bem e do mal, ou melhor, a alternativa constitutiva de todo e qualquer problema, da escolha e da decisão, da adequação dum acto a si próprio (isso, o seu sentido) dá-se evidentemente na reflexividade e na auto-determinação produzida por esta. Põe imediatamente o problema da verdade, do ser ou não ser assim ou cozido.

É assim que argumentam os que desejam a descriminalização, de que a criminalização não conduz às condições de respeito pela liberdade de consciência inerente àquele em que se produz uma alma, uma mente reflexiva que se interroga e cujo fundo de resposta à interrogação só a ele pertence. Os que criminalizam estonteiam-se pelo facto de se poder representar que há duas almas a bailar no dilema, duas liberdades.

Se há unicidade de sentido (neste caso, e passe-se a interrogação, a universalidade dos direitos humanos) e comunidade de acesso à sua confusa e tacteante busca, porque não há união dialéctica entre ambas posições?

Não se trata de hierarquias diferentes de valores (o direito à vida humana e o direito à auto-determinação, que paradoxalmente significa o direito à alma dum e o direito à alma doutra) visto que é precisamente na tensão entre os valores que se dá a discussão e diferenciação, e se daria, caso fossem os direitos humanos a estar em jogo, o seu mútuo esclarecimento e aprofundamento. Ou seja, caso fosse a verdade que estivesse em jogo. Mas o que parece passar-se é um conflito insanável, explícito e inexplícito, consciente e inconsciente – no domínio das representações, num mundo em que estas se totalizaram e pretendem ocupar o espaço todo da vida, e da alma.

A representação, essa filha pródiga do espelho de si próprio, onde perfilam imagens e conceitos – é um momento da verdade, é até o inaugural momento em que parece estar algo à nossa frente, como se fosse possível lançar-se numa viagem de alargamento e aprofundamento da vida, de si próprio.

É a representabilidade do mundo na mente reflexiva que possibilita interrogar indirectamente a vida, e ao duplo de si próprio na auto-representação.

E precisamente por isso, a questão do autêntico e do falso, não se esgota no seu momento interpelante, na sua interrogação, mas prossegue na remissão para a vida vivida daquele que tropeçou em si próprio e se interrogou. Isto é, para nós próprios, em carne e medo e esperança, vivos.

Sem retorno a si não há execução, não há aferição de si, não há verdade, não há nada, tão só balões assustados a pairar no meio de lentas representações e tenazes conceitos.

No plano representativo, há contaminações de significado, que só uma feroz remissão a si pode aferir. Por exemplo relativamente à questão do aborto, a gravidez mexe com a ligação profunda entre sexo e vida, até ao útero da nossa mãe, nós fomos aquela pasta celular, nós fomos aquilo, um pequeno nada em que se inicia a nossa vida, nós próprios, os que nascemos. O modo como nos representamos a gravidez está inquinada da auto-representação de cada um, o que nos faz ressentir o feto como um pequeno eu prestes a ser assassinado, ou um pequeno nada celular de que nos podemos desfazer sem mais, no limite da equivocidade representativa e conforme projectemos a auto-representação no ser humano em gestação ou na mulher grávida. Outra representação em jogo é evidentemente, a da mulher, ou do feminino. O que é curioso verificar é a menoridade e vitimização que categoriza representacionalmente a mulher (empurrada biologicamente para a gravidez, empurrada socio-economicamente para o aborto).

Esta exigida remissão a si, não se refere ao que numa certa tradição se nomeia o mundo empírico, visto que este é evidentemente um plano de representações, com a sua estrutura e dinâmica conceptual definível. Esta remissão exige a suspeita de todos os sistemas de sentido, em que por muito que as suas representações e interiores conecções se queiram verdadeiras de realidade – e precisamente por e através disso mesmo – no seu fechamento invertem-se num despotismo conceptual que se afasta do vivido que o originou. Este torna-se um estranho de si próprio, na separação do duplo e daquilo que é suposto duplicar. Torna-se uma mentira. Quando um determinado fluxo de representações e seu modo de constituir-se, pretendem esgotar as possibilidade de revelação e sentido do obscuro estar aqui – soa o alarme profético, a exigência do retorno à anterioridade do estertor mental, ao grito de si próprio no silêncio mais obscuro de si próprio, na verdade que somos e de que somos, no puro aqui. A remissão para o inominável instante, é exigência de autenticidade integral, viva. É o fundamento central e inicial da ética, que passa o resto da sua dinâmica a fugir dele, do fugidio estar aqui, a vida somente nada mais.

(Estou cansado, pensar é uma chatice perigosa. Acendo a televisão, que fique em frente de mim, tão oca como o que digo e penso, cuidado com a inevitável e latente sistematização da vida na tua pinha, rapaz).

A miúda de catorze anos, a queca de sexta-feira à noite, o anticoncepcional que não funcionou, a responsabilidade na quantidade de filhos, o desespero de quem vive em abandono e pelas ruas da cidade, o granel no quarto escuro do sex-bar, a vida embriagada e embriagante dos paraísos artificiais a confusão neurótica da carência afectiva, etc.

Será nas remissões às situações de vida que é aferida a consistência das exigências éticas, e as diferenças vitais que a formalidade genérica refracta e subsume mas que são o seu princípio orientador. É aqui o acto e lugar em que a distinção entre o acto de abortar e o de assassinar outrem se dará ou não.

Dá ideia que aquilo que separa os que recusam a descriminalização do aborto, dos que a requerem, não tem nada que ver com a problemática dos direitos humanos. É conflito de regionalidades identitárias que se fecham em si, assustadas. O que os une, ou poderá unir, é o esclarecimento gradual da sua mútua e por ora disjuntiva conexão, a saber – da auto-determinação aliada à determinação própria do outro, do nascimento até à morte, claro, do amor à eternidade.

A mui famosa expressão, já neste blog também referida, de que « A minha liberdade acaba onde começa a do outro » indica evidente e confusamente algo de fulcral na noção de direitos humanos, mas vem ainda imbuída duma relação sujeito e objecto mutuamente reversível, isto é, o outro enquanto objecto para mim e eu enquanto objecto para ele. Talvez um crescimento duma solidariedade imanente (eu também sou o outro) abra vias mais certas à intuição que preside a esta famosa afirmação. Até porque formalmente, ela é problemática : se a minha liberdade acaba onde começa a do outro, onde raio acaba a deste ? Ficamos todos presos e bloqueados, visto até que a definição de obstáculo ser relativa ao próprio, e qualquer acto de liberdade minha poder ser considerado atentado à liberdade do outro, dos cigarros às caricaturas. Numa solidariedade imanente, a liberdade do outro seria elemento constituinte da minha, e até seu alargamento e intensificação.

Passa-se também que a gravidez realiza de modo brutal, do fundo de não haver alguém e passar a haver através de outros, essa solidariedade imanente em que um não é sem o outro. Mas se na geração aquele que está para nascer depende exclusiva e vitalmente do corpo que o gera, a mulher enquanto pessoa tem o inalianável direito de decidir-se pela maternidade, de escolher ou não escolher esta. Não há dever pessoal de maternidade, ou melhor, mesmo que haja, nunca poderá ser imposto por outra instância que não a própria mulher perante essa sua possiblidade. Outro factor perturbante aqui, é que o homem não pode fazer uma remissão directa para o acontecimento, visto que não é o seu corpo que pode engravidar. A diferenciação de géneros é aqui inequívoca.

Entre a maternidade e a gravidez vai o mesmo abismo que entre a lucidez e a vida bruta. A maternidade não decorre da biologia, mas da assunção duma tarefa de vida. E os motivos duma mulher para não ser mãe não são nem julgáveis nem qualificáveis no espaço público.

Por outro lado, todo o humano, essa possibilidade de haver um eu, algo que inquire por si – tem um inalianável direito a ser e viver. É nesse sentido que se discute na problemática do aborto, a questão do sujeito humano, se um embrião o é ou não, e a verdade é que a questão está longe de ser clara.

(Devemos viver agora, como seres humanos, diz a Michelle Pfeiffer no filme « A mulher falcão », na televisão enquanto escrevo estas linhas.)

Legislar é um acto formal cujos conteúdos de valor e sentido advém da ética, da estética e da religiosidade, da ciência, da política, do senso comum... A legislação (a lei moral, a lei estética, a lei religiosa, a lei científica, a lei política, a lei civil, a lei cultural…) é um acto puramente formal que retira o seu conteúdo de actividades vitais que lhe são anteriores.

Responder é um resultado do início e do fim – pelo meio, é só miopia confusa. E a lei, é sempre a última a ouvir a resposta. Pois a lei nunca é resposta, mas tão só confirmação ou negação de respostas já dadas. Só se escreve na pedra o que já se escreveu no coração, justa ou injustamente.

Há também a curiosa e perversa situação de, em nome duma dialogalidade na diferença, se pretender anular esta retirando do discurso público elementos de constituição da singularidade tais como experiências pessoais, concepções do mundo e da vida, modelos de pensamento, signos e símbolos poéticos, estruturas religiosas, etc. Pretende-se, ingénua ou dissimuladamente, fazer passar um horizonte de que é pensável uma razão pura e auto-determinada que corresponda a um logos universal, uma razão comum e idêntica a todos os humanos e seres reflexivos, e correspondente ainda por cima à tessitura do real. Como se a argumentação retirasse o seu sentido e orientação de si própria, quando ela não passa de um método de aferição e desenvolvimento das diversas contraposições de teses, cuja constituição é bem mais alargada do que a dedução. Ou seja, elide-se a parte do hipotético, isto é, as premissas ou interrogações donde se parte. Resta perguntar a partir de que representações e modelos se argumenta, visto que a argumentação e a dedução são sempre segundos momentos de qualquer processo de esclarecimento. Infelizmente, o equívoco é desejado pela pretensão de se estar certo e a partir daí comandar ou condenar a consciência do outro.

A mútua libertação é uma das tarefas mais árduas implícitas na dinâmica dos direitos humanos.

Ora, passa-se que a compreensão de algo como os direitos humanos, terá ou não terá a sua universalidade, numa integral tomada de consciência de si próprio e da sua humanidade, que não estritamente dedutiva, embora evidente e fundamentalmente também o seja. Uma das suas revelações reside aliás na singeleza dum sorriso de acolhimento e partilha. Mas o simples, está tão afastado de nós como a verdade das coisas. É chato como o moscardo ateniense, chegar-se à conclusão que nisto que está em jogo e interpelação, no fundo e para ir a direito, aprender a amar e a morrer – estamos ainda e sempre a milhas da sua aferição e gradual realização. Ainda não chegámos à nossa própria vida, quanto mais. Não sejamos absolutamente certos a julgar seja o que for. Eu cá, quando ouço a palavra “irrefutável”, peço logo um gim tónico.

Num mundo de representações e tacteantes impressões, é olhando de frente, de dentro e de viés, para a complicação que somos, que nos aproximamos do nosso próprio ser, e do sentido que nos realiza em conformidade. (Ou então, quiçá, simplesmente sorrindo, mas nesse caso olhando e esperando, e agindo e continuando a espera, lúcido da sua própria obscuridade – anseando, por si próprio, no fim da jornada do pecado e da graça.)

A maioria das situações dilemáticas exigem a escolha do mal menor, ou da retenção dum mal através doutro mal, como na legítima defesa ou no uso da metadona na heroinomania. Neste ponto, reside também a questão trans-ética e política, de quais as instâncias passíveis de interferir na decisão. O facto de o dilema do aborto implicar uma decisão acerca do que se passa no próprio corpo duma mulher grávida, não é de somenos, e distingue claramente a questão abortiva de outras em que os direitos humanos são interrogados. Porque a legitimidade do Estado, isto é, uma instância colectiva – e deixando de lado agora a definição do tipo de Estado e suas soberanias inerentes – de poder determinar decisões acerca do corpo pessoal de cada uma (pois, para o caso isto resume-se ao género feminino, e nenhum homem pode impor a sua paternidade, isto é, obrigar uma mulher à maternidade), não é de todo líquida, nem nos seus princípios nem nas suas eventuais consequências para além da problemática do aborto.

Põe-se aqui também com toda a sua acutilância, e com relação clara com a problemática do aborto, a questão da auto-determinação sexual. Isto é, o direito a poder foder como e quando e com quantas pessoas se quiser, desde que em mútuo e adulto consentimento (é preciso uma perversão representativa enorme, para a partir da distinção conceptual entre o direito à vida humana e o sentido da sexualidade, pretender que na remissão a si uma decisão num dos campos não configure uma consequência no outro). Dizer-se que o direito é limitado pelo dever que lhe é correspondente é estar aquém da problemática, porque um direito ou é a afirmação e execução de um dever ou está manco e mutilado. O dever de decidir a minha sexualidade é inerente ao direito de a decidir, como é formalmente evidente. A questão aqui é se é legítima a intervenção duma instância que não o próprio na determinação das práticas sexuais, que sendo livres conduzirão sempre, mais ou menos pontualmente, a gravidezes indesejadas, e à questão da sua resolução.

No aspecto da gravidez, trata-se do direito a ter filhos se constituir no dever de os ter em condições de responsável maternidade e paternidade, e quais as adequadas práticas de execução e manutenção desse direito e dever. Ter filhos a trouxe-mouxe não é maternidade nenhuma, nem direito algum visto que inviabiliza as suas próprias condições de responsabilidade.

A resolução dum direito e respectivo dever nortear outros é mais complicada do que parece quando proferida do pódio da discursividade. Orientar o direito à auto-determinação sexual pelo direito à maternidade, ou vice-versa, põe contradições práticas difíceis de resolver, por exemplo: quando os contraceptivos falham com quem não quer ou não pode responder dignamente à maternidade e paternidade. Já para não falar de tantas situações a que a nossa realidade social e psicológica conduz e que inevitavelmente têm como resultado desastrosas gravidezes, e a que o acto de abortar não soluciona na sua raíz mas constitui o grito da pessoa num dilema que não escolheu nem lhe foram dadas condições sociais e psicológicas de o fazer.

(E se inventássemos o mar de volta, e se inventássemos partir, para regressar. Partir e aí nessa viagem ressuscitar da morte às arrecuas que me deste. Partida para ganhar, partida de acordar, abrir os olhos, numa ânsia colectiva de tudo fecundar, terra, mar, mãe... ouço escorrer surdamente da casa do vizinho, paro de escrever, acendo um cigarro, merda, o que dizer, pensar, fazer... A alma é sempre maior que o mundo, e é neste doloroso embate que nasce a linguagem, essa perversão gritada de nada e tudo.)

No fundo, o que complica isto tudo, são as instâncias em jogo. Nem a ética tem uma relação directa com a prática, nem a lei civil tem uma relação directa com uma ou com outra. As regulações mútuas em jogo entre estas diversas instâncias não pode ser resolvida por uma supremacia de uma perante as outras, que caracteriza a maioria das propostas a que acedemos ou produzimos, como é notório nesta problemática do aborto: a barriga é minha, a sociedade moderna e liberal implica o aborto legal, o aborto é um facto de que decorre a sua legalização e regulamentação, não me deixam nascer, só engravida quem quer, a mulher deve levar a gravidez até ao fim no dever duma sexualidade responsável, etc, são fenómenos discursivos desta ilegítima supremacia de um dos polos da tensão entre ética, prática e política, quando não o são da mera estupidez ou má fé que tanto nos caracteriza.

E a constituição destas instâncias – ética, prática, política - em conformidade com os direitos humanos, está longe de ser efectiva, ou sequer esclarecida filosoficamente, por muito que ande na boca de todos nós como uma cantilena certa e adquirida. Quanto a mim, ainda nem chegámos à construção do navio, quanto mais às normas da sua navegação.

Relativamente à solidariedade imanente, que é o sentido cristão dos direitos humanos, perante as condições em que somos e vivemos, é caso para dizer: falaremos disso noutro dia, que estes que construímos não têm mesmo condições para tal.

Votar não

Votar não não significa que se tenha de manter a lei como está. Significa que se rejeita a mudança que o PS propõe. Há que saber interpretar o que é rejeitado ao votar não. O realismo que o PS advoga ao pedir votos para o sim passa a um literalismo idiota no caso de vencer o não*?

Cito
o CA: "O não no dia 11 é um não à pergunta feita, nas circunstâncias que é feita. Não perceber isso e pensar que a despenalização só pode ser feita da maneira que o PS quer ou então o PS deixa tudo na mesma é uma birra infantil do PS e não uma posição política responsável de quem está empenhado em que nenhuma mulher possa ser presa. "

Era de pensar que o PS já soubesse isso. Ou quando foram derrotados no referendo sobre a regionalização puseram de parte a ideia da descentralização?

Liberalização vs descriminalização e regionalização vs descentralização: jogos de palavras?


* No fundo, estão apenas a defender os interesses do Partido. Admitindo a possibilidade de acabar com as penas de prisão (medida com que uma esmagadora maioria da população concorda e para a qual não é preciso referendo nenhum), perdiam-se votantes no sim. Então faz-se dessa medida refém de uma vitória do sim, defendendo que não deve ser concretizada em caso de derrota. Numa palavra: terrorismo.

O dia seguinte II

Neste momento é cada vez mais séria a possibilidade do não ganhar no próximo dia 11. Há precedentes já estudados de posições que começam por ser minoritárias e acabam por ganhar referendos. E uma das razões parece ser o facto de os eleitores não gostarem que se aproveite uma sensibilidade consensual de abertura para tentar impor uma posição radical.

Por cá o presidente do PSD parece estar sensível à vontade de muitos portugueses: mesmo que o não ganhe o PSD está empenhado em descriminalizar o aborto. Em contrapartida o PS mostra muito mau perder: se o não ganhar, o PS parece mais empenhado em fazer uma birra do que alterar a lei actual, deixando uma enorme interrogação sobre a real preocupação do PS com as mulheres.

Posto isto, não tenho dúvidas que ao radicalismo obcecado do sim, que liberaliza completamente o aborto, é possível responder com a moderação de um não que evita exageros agora e permite que na Assembleia da República se descriminalize o aborto sem o tornar um acto completamente banal.

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Efeitos perversos

Há quem afirme que nenhuma mulher aborta por motivos fúteis. Não será ingenuidade?

Cito do blog elasticidade:


O fim da história do aborto

- Fui à médica de clínica geral. Ainda não conhecia esta, era nova. Tinha problemas no trabalho, o meu patrão era chato, e tinha uma dor de cabeça muito forte. Fui lá pedir uma baixa. Ela não me queria dar e às tantas comecei a chorar. Na altura estava grávida de um mês. Então ela pegou nuns cartões que tinha lá, e começou a perguntar-me se me sentia feliz com a gravidez. Se não precisava de a re-ponderar. Se não a queria re-ponderar. Se achava que ia conseguir ter uma ligação afectiva forte com a minha filha.

Uma grávida em fase final contou-me isto. Em Londres. Onde se começa a falar em reduzir o limite legal das 24 semamas para se poder abortar. Porque já nasceram crianças com 20 semanas e depois é chato. Claro que isto são em outros países. O aborto em Portugal vai ser feito à séria, no sistema nacional de saúde, e com imensa prevenção. Porque somos todos contra o aborto. Não é para depois andarem a aliciar as grávidas com propostas. Por causa das dores de cabeça. Isso é em países pobres, sem bons médicos. Cá (aí) é só a pedido dela, da mãe. Acreditem, virá na lei. Pelo menos vem no papelinho que vamos assinar. Não é?

Diário da Campanha (I)

Alexandre Quintanilha, doutorado em Física e biólogo em Berkeley, diz que o espermatozóide e o óvulo também são vida humana.
Eu, com a biologia do Secundário, permito-me um reparo.
Os dedos que teclam este post também são vida humana. Mas deixarão de ser se forem separados do corpo ou o corpo morrer. O mesmo se passa com o espermatozóide e o óvulo.
O embrião, o feto, é diferente. Tem uma vida independente. Precisa da mãe, como os bebés nascidos precisam. Quanto ao resto, está lá tudo o que é necessário para se tornar um ser humano adulto e independente. O espermatozóide, o óvulo e os meus dedos não têm essa capacidade. Nunca poderão, por exemplo, estudar em Berkeley.

Preto e branco vs posição moderada

Estava escrito numa faixa de uma residência universitária: O único tirano que admito é a voz da minha consciência. Não gosto muito de aduzir verdades ou modelos universais (mea culpa, tenho alma de relativista), mas admito tratar-se de uma frase muito apelativa.

Considero o respeito pela consciência alheia uma regra de ouro. Cada um sabe de si e faz as suas escolhas. O julgamento das mesmas, a ser alguma vez feito, não deverá ser por mim. Afinal, quem sou eu?

Por outro lado, acredito na solidariedade (que, na lógica dos tempos modernos, passa muito pelo Estado). Acho que é uma obrigação estarmos do lado dos mais fracos, construirmos condições para que todos possam viver felizes e com dignidade, e para que possam realmente exercer aquilo que as suas consciências lhes dita.

É em nome dessa solidariedade - que considero uma obrigação, não uma opção - que o Estado tem de ter regras e leis, que nos protejam uns dos outros (infelizmente, nem sempre a consciência dos outros é garante de uma conduta aceitável). Acredito que essas regras devem ser reduzidas ao mínimo, e ficar dentro dos limites do senso comum, embora hoje em dia a regra pareça ser regular tudo (o que me assusta... estamos a entrar numa era em que somos tratados pelos legisladores como crianças, o que terá forçosamente de implicar uma falta de crédito pela posição individual de cada pessoa).

No caso específico do aborto, a questão não pode ser reduzida à consciência de cada um. Somos obrigados à solidariedade, e isso é nítido tanto do lado dos defensores do sim como dos defensores do não. Os primeiros centram-se nas mulheres que pretendem abortar (sendo omissos relativamente às que não querem abortar, e mais ainda, relativamente aos seres abortados, que excluem da lista dos que merecem solidariedade). Os segundos centram-se na defesa dos nascituros (condicionando assim, na sua lógica, a solidariedade "oferecível" a mulheres que queiram abortar a uma ajuda para poderem ter uma gravidez e uma maternidade dignas).

Não me parece portanto que o actual debate se baseie numa questão de consciência, mas sim numa de solidariedade. Quem é que consideramos merecedor de solidariedade? Numa lógica a preto e branco, quem escolhemos? As mulheres que querem abortar, os os nascituros?

Depois há a terceira via, mais moderada, que é a que está em vigor com a actual lei, em que se tenta atingir um equilíbrio. O ponto de partida é que o aborto deve ser condenado, mas há casos em que isso se torna humanamente demasiado cruel, ou em que há conflitos de interesses. Nesses casos sim, deixa-se o aborto à consciência de cada um.

Estou a favor da manutenção desta filosofia (admitindo que se possa rever aspectos como os da pena de prisão, que poderá ser substituida por outra). Acho natural - desejável até! - que se discutam os casos em que se deve permitir que o aborto seja uma decisão deixada à consciência da potencial mãe. Agora, simplesmente permitir que o aborto seja realizado em qualquer situação, considero que é uma falta de solidariedade para com os nascituros.

Poderão argumentar pela falta de necessidade de legislar, porque "não há mulheres que abortem levianamente". Discordo. Vivemos no mesmo país onde há pais que vendem favores sexuais dos filhos para compôr o orçamento familiar (podia arranjar outros exemplos, obviamente). É ingenuidade acreditar que nesta área tudo correrá bem...

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Do outro lado da fronteira...

...as razões do Não também fazem sentido:

quarta-feira, janeiro 31, 2007

As razões dos médicos

As razões do NÃO explicadas pelos médicos : www.medicosporissonao.com

Os não desejados

É uma crueldade fazer nascer uma criança que não é desejada. Um filho só deve nascer se é desejado e amado. Se uma mulher grávida não deseja o filho já concebido, mas não nascido, deve ter a liberdade de optar pelo aborto.

Este argumento tem sido usado até à exaustão por muitos defensores do SIM. E fazem-no dando-lhe o ar enternecedor de quem "só quer o bem das crianças". Se o embrião falasse, decerto dasabafaria: "Com amigos assim, não preciso de inimigos".
Este argumento não se limita a ser falso. Também é cínico. E hipócrita.
O valor da vida de um "outro", qualquer que seja, não depende, em nada, de quanto eu o "desejo" ou "amo". Esta lógica deixa à vista um retorcido egoísmo. O que mais há por aí são filhos "indesejados", muito contentes e felizes da vida. Porque nasceram, mesmo sem terem sido planeados, desejados ou amados. Nasceram, cresceram, fizeram-se à vida e tiveram muitos filhinhos. E foram felizes. Ou não. Como todos.

Isto não tem, obviamente, nada a ver com a mais que reconhecida legitimidade e necessidade de um planeamento familiar responsável. Mas esse planeamento faz-se a montante da concepção. Como a própria expressão indica. Às vezes os planos falham? É verdade. Mas como em muitos outros sectores da nossa vida, a solução não passa por fingir que não aconteceu nada e seguir adiante. A liberdade não existe sem responsabilidade. Ou entendemos que no que se refere aos filhos concebidos não há responsabilidades que assumir?

Uma razão para o Não

Juntando as vozes do Sim e o Não, parece quase consensual que o aborto é um mal que deve ser evitado.
Se a liberalização aumenta o número de abortos (diz a lógica e dizem as estatísticas) então implementá-la significa não só baixar os braços perante o mal que queremos evitar mas, pior, deixá-lo crescer.
Nem o Sim nem o Não têm pretensões a resolver, em definitivo, o problema do aborto. Votar Sim, no entanto, promove o seu crescimento.

terça-feira, janeiro 30, 2007

Hipocrisia

Hipocrisia é (entre outras coisas) dizer-se tolerante mas não ter abertura aos argumentos alheios, ao ponto de se projectar nas outras pessoas o que se pensa que elas pensam.